Por Sérgio Rodas
No fim da manhã desta quarta-feira (30/1), o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, permitiu que o ex-presidente Lula deixasse a prisão e fosse ao enterro de seu irmão Vavá – marcado para ocorrer às 13h, em São Bernardo do Campo (SP). Antes disso, no entanto, a Justiça Federal da 4ª Região proibiu o ex-presidente de ir velar o irmão, atendendo a pedidos do Ministério Público Federal e da Polícia Federal.
Com a negativa, essas instituições negaram a Lula um direito fundamental de qualquer preso, previsto na Lei de Execução Penal, afirmam especialistas ouvidos pela ConJur. Com isso, colocaram em xeque o Estado Democrático de Direito no Brasil, acusam.
A PF e o MPF manifestaram-se contra o pedido de Lula ir ao enterro de Vavá, que morreu na terça (29/1). Segundo o superintendente regional da PF no Paraná, Luciano Flores de Lima, que assinou o parecer, os helicópteros que poderiam ser usados para transportar o ex-presidente estão atendendo às vítimas do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG). Ele também disse que Lula poderia fugir ou ser resgatado por correligionários — embora não tenha demonstrado indícios concretos de que isso possa acontecer.
Na madrugada desta quarta, a juíza federal Carolina Lebbos, da 12ª Vara Criminal em Curitiba, negou o requerimento de Lula. No despacho, ela afirma que a decisão final cabe à Polícia Federal, que alegou dificuldades logísticas para fazer a viagem. A defesa recorreu, mas, com o mesmo argumento, o desembargador de plantão do TRF-4, Leandro Paulsen, manteve a proibição. Paulsen também considerou o risco à segurança de Lula e à ordem pública, alegando haver possibilidade de confronto entre apoiadores e detratores do ex-presidente — de novo, sem demonstrar indícios concretos que demonstrem essa possibilidade.
Lula está preso desde 7 de abril do ano passado por ter sua condenação no caso confirmada pelo TRF-4, que impôs pena de 12 anos e 1 mês de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá (SP).
Direito fundamental
O artigo 120 da Lei de Execução Penal estabelece que “os condenados que cumprem pena em regime fechado ou semiaberto e os presos provisórios poderão obter permissão para sair do estabelecimento, mediante escolta, quando ocorrer falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão”. O parágrafo único do dispositivo determina que “a permissão de saída será concedida pelo diretor do estabelecimento onde se encontra o preso”.
Dessa maneira, a Justiça não poderia negar que Lula velasse o irmão, afirmam especialistas. O criminalista José Roberto Batochio, um dos responsáveis pela defesa do ex-presidente, diz que esse é um direito assegurado aos detentos. “Não é que o juiz poderá conceder o direito de o preso ir ao enterro de um parente. É o preso que poderá ir se quiser”, afirma.
Negar essa medida a um encarcerado fere o princípio da dignidade da pessoa humana, opina o advogado Luís Guilherme Vieira. Já o professor de Processo Penal da USP Gustavo Badaró ressalta que o direito de o detento ir ao enterro de um parente não é uma discricionariedade do diretor do presídio ou do juiz. Ou seja: se morreu cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão do preso, ele pode automaticamente ir ao sepultamento, salvo em situações muito excepcionais.
Trata-se de um direito, não um benefício ou regalia que o juiz ou a burocracia da administração penitenciária concedem a presos conforme a conveniência de cada um, afirma o professor de Direito Penal da UFRJ Salo de Carvalho. É possível negar essa saída temporária, ressalva, mas desde que ela seja fundada em argumentos plausíveis.
“É possível negar o pedido, mas da forma como fizeram com Lula é cruel, desumano e inadmissível. Fere de morte a Lei de Execução Penal”, declara o criminalista Alberto Zacharias Toron.
O problema, segundo Luís Carlos Valois, juiz da Vara de Execução Penal do Amazonas, é que os detentos não são vistos como sujeitos de direito, e sim como objetos. Isso faz com que os direitos deles sejam sistematicamente negados pelo Estado.
“O desrespeito aos direitos do preso é endêmico, um costume judicial brasileiro, que promove a ausência total de cidadania dentro de uma instituição pública, obviamente favorecendo o aumento da criminalidade e a violência dentro do sistema prisional”, analisa Valois.
Para Aury Lopes Jr, advogado criminalista e colunista da ConJur, o direito de sepultar o irmão não tem relação com a identidade do preso. "Trata-se de um direito assegurado a todo e qualquer preso submetido ao regime fechado ou de prisão cautelar, para o Lula ou para qualquer outra pessoa".
Sem fundamento
Para além da questão de mérito, os fundamentos usados pela PF, pelo MPF e pelo Judiciário para negar o direito a Lula também são insuficientes. Dificuldades logísticas, ou um suposto risco de revolta popular não podem impedir a concessão de um direito previsto em lei, avaliam os especialistas. Esse, aliás, foi um dos argumentos do ministro Toffoli para autorizar Lula a velar o irmão.
“Para quem quer pretexto, qualquer pretexto é pretexto”, ataca José Roberto Batochio, apontando que o PT colocou um helicóptero à disposição de Lula.
Luís Guilherme Vieira afirma que “se o Estado não tiver condição de levar um preso de um lugar A a um lugar B, está falido”. Aury Lopes Jr concorda, e classifica o argumento como inadmissível. "É impensável que o Estado brasileiro não tenha condições materiais de garantir que um ex-presidente da República vá ao enterro do irmão".
Gustavo Badaró diz que as justificativas usadas para proibir Lula de deixar a prisão não são razoáveis. Para o professor, as dificuldades são contornáveis. Bastaria, por exemplo, determinar que, durante certo período, o velório ficaria fechado à visitação do público. E proibir que houvesse presença da imprensa ou manifestação pública do petista, como Toffoli ordenou.
Ainda que não houvesse helicópteros da PF à disposição, essa não é a única alternativa de transporte possível, destaca Salo de Carvalho. Nesse caso, o juiz poderia proceder como na saída temporária — autorizando que Lula fosse ao velório e fixando um prazo para seu retorno à prisão.
Cartas na manga
Segundo Carvalho, a ordem pública tornou-se um "argumento coringa" para negar pedidos de quaisquer tipos. No caso de Lula, ela foi usada com base em elementos vagos e imprecisos, "de duvidosa validade constitucional", afirma o professor da UFRJ.
E o fundamento do risco à segurança é “falacioso”, continua Salo de Carvalho. “O juízo sobre eventual risco cabe a quem fez o pedido. Trata-se de uma evidente inversão lógica (e por que não também ideológica?): restringe-se um direito (saída) com base na tutela de outro direito (à segurança) daquele que demanda. Visão no mínimo paternalista e que não se harmoniza com a estrutura dos direitos individuais da Constituição”.
Alberto Toron critica o alegado risco de fuga. “As razões invocadas refletem um comodismo incomparável com o direito estipulado em lei. Ademais, mal escondem a irrazoabilidade diante do fato de que ele havia se apresentado para o cumprimento da pena. Portanto, o alegado perigo de fuga é, no mínimo, risível.”
Nada novo
Luís Carlos Valois, que lida com esse tipo de situação todos os dias, diz não estar surpreso com os posicionamentos da PF e do MPF. Para o magistrado, isso “é resultado do desvirtuamento do sistema, em que os órgãos repressores ou acusadores se colocam como inimigo da pessoa que responde a um processo, estigmatizando o cidadão, que nada mais é do que um cumpridor de uma pena legal, e agravando a violência estatal”.
Ainda assim, Valois lamenta que o Judiciário aceite com frequência esse tipo de orientação, já que seu papel deveria ser proteger o cidadão dos excessos do poder punitivo do Estado. “Com o Judiciário acatando as opções administrativas da polícia, a pessoa que cumpre pena fica totalmente desamparada.”
Nem na ditadura
José Roberto Batochio lembra que nem na ditadura militar negaram que Lula deixasse a prisão para ir ao enterro de um parente — no caso, a mãe. Em 1980, Lula era presidente do sindicato dos metalúrgicos do ABC Paulista e foi preso por comandar uma greve geral. Quando sua mãe morreu, ele estava preso, mas o então delegado Romeu Tuma autorizou que ele fosse ao enterro, desde que não falasse com a imprensa e voltasse à noite.
Na visão de Batochio, a proibição de Lula ir velar o corpo de Vavá é sintoma de que o Estado Democrático de Direito "está naufragando no Brasil". “Todos os brasileiros que prezam as liberdades, as conquistas civilizatórias de nosso ordenamento jurídico devem se preocupar muito, eis que desponta uma nova forma de arbítrio, que é o arbítrio da burocracia.”
Para Toron, o episódio é "a antítese do Estado Democrático de Direito". Luiz Guilherme Vieira concorda: “A decisão corrói o Estado Democrático de Direito. Entristece qualquer povo, em qualquer lugar do mundo. A questão não é Lula. Ele não pode ter mais direitos ou menos. É um cidadão como outro qualquer”. Já Badaró deixa claro que, em um Estado Democrático de Direito, é “muito grave” negar um direito fundamental.
Ficção
Formalmente, o Brasil continua sendo um Estado de Direito. Na prática, contudo, não é assim, afirma Valois. “Sobra um Estado que se diz de Direito, assim em letra maiúscula, com autoridade, autoritarismo e força, mas não resta nada de um estado de direito, assim com letra minúscula, em que o estado de direito fosse um fato, um princípio a ser respeitado pelo Estado de Direito, governo no caso.”
Salo de Carvalho diz que a negativa não surpreende, pois esse tipo de decisão é “espantosamente freqüente”. Assim como é frequente a violação da legalidade no sistema penitenciário, geralmente decorrente da omissão do Executivo e com a conivência do Judiciário, destaca.
“Nosso sistema penitenciário agoniza há décadas. E é a análise do sistema, como um todo, e da situação de todos os presos, que deve ser confrontada para compreender o que revela do nosso Estado Democrático de Direito. Decisões isoladas, como esta em questão, são representativas, logicamente, e dizem muito do nosso sistema punitivo. Mas invariavelmente servem apenas para reforçar um debate pontual. E a grande massa carcerária, que cumpre sua pena em condições miseráveis, segue esquecida”, lamenta o professor da UFRJ.
Aury Lopes Jr acrescenta que o pedido de habeas corpus deveria ter tramitado muito mais rapidamente. "No fundo, situações assim reforçam a crítica de que está existindo, sim, lawfare no caso Lula, incompatível com o que se espera dos órgãos que integram o sistema penal em um Estado democrático de direito. É realmente lamentável".
Fonte: Conjur